Considerações a respeito das mudanças na lei dos Sefarditas, por William SantanaA partir do dia 31 de agosto, entram em vigor para os descendentes de judeus sefarditas as mudanças promovidas no Regulamento e Lei de Nacionalidade Portuguesa por ocasião da promulgação do Decreto-Lei nº 26/2022, de 18 de março. É um passo extremamente relevante no curso de uma legislação introduzida pelo Decreto-Lei nº 30-A/2015, de 27 de fevereiro, que pretendeu reparar, ao menos em parte, os prejuízos ocasionados aos judeus e aos seus herdeiros que foram despojados de sua fé e de sua pátria quando Dom Manuel I expediu o édito de expulsão de 5 de dezembro de 1496.
Como tratarei em artigo que deve ser publicado ainda neste ano, as leis que garantem nacionalidade aos descendentes da diáspora sefardita nos países ibéricos são exemplo reparatório único no direito mundial: o Reino da Espanha, tanto na época de Primo de Rivera na década de 1920, quanto mais recentemente, de 2014 a 2019, e a República Portuguesa, desde 2015, fizeram a opção de acolher os descendentes de pessoas que já morreram há muitos séculos.
No caso português, os motivos são nobres, mas também são práticos: ao passo em que a tentativa de reparar os danos causados pela perseguição de um povo inteiro se fez presente através da concessão da nacionalidade perdida no passado (lembramos que falar de nacionalidade no século XV é um tanto complexo), a escassez de mão de obra, a falta de pessoas para manter a base da pirâmide econômica lusitana e a necessidade de atrair trabalhadores para o mercado decerto impediram que a lei fosse revogada por completo quando de sua última alteração.
Convenhamos que a lei dos sefarditas se mostrou, de certo modo, problemática em alguns aspectos. Em um primeiro momento, é evidente que é impossível mensurar a quantidade de pessoas ao redor do globo habilitada para requerer a nacionalidade portuguesa através desta via – indubitavelmente passa da casa de dezenas de milhões. Portugal conta com 10 milhões de cidadãos.
Desde 2015 já se esperava que algum tipo de rigidez iria atingir este ordenamento específico, talvez com requisitos como o domínio da língua de Camões ou ligação com o país e com a comunidade portuguesa. Ora, o Império Luso foi o primeiro império transoceânico global da história, e o édito de expulsão se deu exatamente na gênese desta expansão que se estendeu por todos os continentes; é natural que muitos latino-americanos (e não apenas brasileiros), israelenses e judeus que conservaram a religião de seus antepassados, chineses, indianos, médio-orientais, africanos – pessoas oriundas de locais em que os portugueses estabeleceram colônias e entrepostos comerciais no passado – busquem e descubram sua descendência de um sefardita.
Muitas críticas foram levantadas quanto à “venda” de passaportes portugueses levada a cabo por escritórios de advocacia que souberam aproveitar muito bem a leva de cidadãos estrangeiros que por vezes nunca foram a Portugal, que desconhecem por completo a cultura e a história lusitana, e que sequer falam português.
Pois bem, em meio à enxurrada de pedidos de certificação que as comunidades israelitas de Lisboa e do Porto experimentaram desde 2020, a atenção pública se voltou de um jeito especial para esta via de obtenção de nacionalidade, que já enfrentava críticas de setores da sociedade e da política. O ponto de ruptura, somado à explosão dos pedidos de análise de linhagem, foi o escândalo envolvendo Abramovich e a Comunidade Israelita do Porto (CIP).
Novamente convenhamos que este foi apenas um pretexto para restringir uma lei que potencialmente poderia conceder nacionalidade a quem não possui nenhum tipo de vínculo com a terrinha. Os capítulos que se sucederam, dramaticamente corroborados pela imprensa, coroaram o objetivo de muitos: ao passo em que não foi possível revogar a lei por completo (até devido ao risco de se sofrer acusações de antissemitismo), o que aconteceu, na realidade, foi a elitização do diploma e de sua cobertura.
Não parece razoável que uma legislação que busque reparar uma injustiça histórica passe apenas a privilegiar um seleto grupo de pessoas abastadas que tenham imóveis transmitidos para si por herança ou que tenham empresas em Portugal; talvez o ponto menos controverso da nova redação seja a questão das viagens frequentes a território nacional, mesmo que tal previsão também continue a ser discutível, posto que traz de volta um conceito jurídico genérico e indeterminado e, como tal, sujeito a interpretação e discricionariedade quantitativa por parte dos conservadores.
Não está em discussão a importância das pessoas que ainda se encaixam nos novos termos da lei, afinal de contas, Portugal há muito está angariando esforços para atrair empresários que geram emprego e renda – a criação do Golden Visa é simbólico quando o assunto é investimento externo. Todavia é de se estranhar que apenas essas pessoas acessem a nacionalidade de seus ascendentes.
A lei dos sefarditas não é perfeita; longe disso. Podemos indagar, por exemplo, onde estão os direitos reparatórios dos descendentes dos mouros que também foram expulsos ou forçados a se converter pelo mesmo édito de Dom Manuel.
A questão principal, a toda evidência, porém, continua sendo o fato de que não se pode corrigir uma injustiça com mais injustiça: requisitos vinculados à ordem socioeconômica do requerente não estão necessariamente associados ao seu nível de ligação cultural e histórica com a nação. Atributos como o domínio da língua, a existência de laços com Portugal e a promoção da comunidade nacional no estrangeiro nos parece atender muito mais o animus legis que o Regulamento de Nacionalidade carrega sobre si.
Muitos pareceres jurídicos, incluindo de jurisconsultos ligados à CIL, que chegou a publicar um comunicado a respeito do tema em seu sítio eletrônico, vão no trilho de entendimento de que “as normas introduzidas na nova da alínea d) do n.º 3 do art. 24.º – A do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa serão inconstitucionais e consequentemente eventualmente não aplicáveis ou, se aplicadas, passíveis de reversão pelos Tribunais.” Certamente muita discussão ainda há de pairar sobre a questão.
Enquanto nada se resolve, milhares de pretendentes estão no limbo enquanto aguardam suas certificações na Comunidade Israelita de Lisboa (CIL) – a do Porto suspendeu a análise de linhagens – e sabem que não a receberão a tempo do término do prazo do dia 31. O IRN e o Ministério da Justiça não se posicionaram publicamente acerca de qual será a data considerada para efeitos de aplicação dos novos requisitos: se o dia de entrada na comunidade israelita ou a data de requerimento da nacionalidade perante a conservatória. Ademais, será possível protocolar o pedido de concessão da cidadania antes da certificação e, após a emissão do documento, apensá-lo ao processo posteriormente? Nada está suficientemente claro, e a judicialização em certos casos concretos parece ser inevitável.
Fato é que a lei, para o bem ou para o mal, se mantém e ainda representa uma boa oportunidade para aqueles que são contemplados nos requisitos novos, seja para quem busca empreender ou fixar residência em Portugal, utilizando-o como porta de entrada para a Europa e o mundo.
Independentemente do que aconteça, a reflexão que fica, por fim, é sobretudo de ordem política e cultural: enquanto a reparação para os herdeiros dos anussim é matéria extremamente cara aos verdadeiramente comprometidos com a justiça e é uma fonte de reencontro com a história e as raízes familiares para tantos que embarcaram nessa verdadeira odisséia, os ganhos econômicos e a manutenção de injustiças calcadas em sangue derramado no passado continuam sendo a prioridade para muitos, portugueses ou não, que encaram a reparação como mera esmola.
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Por William Santana
Genealogista
Fantastica essa abordagem !parabéns william.Que a justiça dos homens e de Deus seja feita aos Judeus e seus descendentes embora seja só uma” esmola”.